domingo, 19 de março de 2017

Cinco lições sobre a vida e o Direito, por ministro Barroso

20:24 Posted by Eduardo Holanda No comments






Frente a inúmeros escândalos de corrupção e falta de ética, sobretudo dos profissionais do Direito, não se pode perder de vista que a base para que isso não aconteça é a construção de um senso ético e moral. Hoje, 19 de março de 2017, disse o atual Ministro do STF, Luis Roberto Barroso, que "a corrupção no Brasil é um processo sistêmico e estrutural". Pena que esta declaração consiste na pura e triste realidade que nosso país vivencia há tempos.
Ao ver a frase do magistrado venho lembrar de um discurso carregado de lições essenciais à formação ética de um estudante de Direito que o mesmo proferiu na formatura de uma turma, do qual foi patrono, do curso de Direito da UERJ em 2014. Segue abaixo:





A vida e o Direito: breve manual de instruções

Introdução
Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados pela própria voz. Por isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores que compartilhamos. É lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.

A regra nº 1:
No nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.
Após recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia terminado ainda.
E em seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis, chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável – diminuído com aquela prática. Pelo contrário.
Pela primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego, amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.
Após eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados.

A regra nº 2:
Nós vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.

Quem está certo? Onde está a verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós não vemos as coisas como elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção ou arrogância. Sem desconsiderar o outro.

Aqui a nossa regra nº 2: a verdade não tem dono.


A regra nº 3:
Uma vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado, mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar sombrio e exclamou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade, Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes". Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro. Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em como falei".

Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que revele consideração pelo outro.
         Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala faz toda a diferença.


A regra nº 4:
Nós vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final. Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim. O fato de acontecerem tantas coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria recompensa.
Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando.

A regra nº 5
Em uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido, dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples: devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo: tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles). Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece quem oferece e quem recebe.
Em quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás, mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem mesmo é do céu, e é preciso agradecer".
Esta a nossa regra nº 5: ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.

Conclusão
Eis então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções:
1. Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados;
2. A verdade não tem dono;
3. O modo como se fala faz toda a diferença;
4. Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando;
5. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.
Aqui nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a cada um, com toda a energia positiva do meu afeto:
(i) Fique vivo;
(ii) Fique inteiro;
(iii) Seja bom-caráter;
(iv) Seja educado; e
(v) Aproveite a vida, com alegria e leveza.
     Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor. E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta para ser pequena".

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Controle Difuso: O caso Marbury x Madison

15:04 Posted by Eduardo Holanda No comments
   

“A ideia do controle de constitucionalidade realizado por todos os órgãos do Poder Judiciário nasceu do caso Madison versus Marbury (1803), em que o Juiz Marshall da Suprema Corte Americana afirmou que é própria da atividade jurisdicional interpretar e aplicar a lei. E ao fazê-lo, em caso de contradição entre a legislação e a Constituição, o tribunal deve aplicar esta última por ser superior a qualquer lei ordinária do Poder Legislativo.”
Alexandre de Moraes (2003)

O Direito americano muito influenciou na consolidação do Direito brasileiro, sobretudo no tocante ao controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Nosso Direito importou do Direito americano o controle difuso de constitucionalidade, que tem seu início marcado pelo caso Marbury vs. Madison.
Para uma primeira aproximação é preciso voltar no tempo e ir ao século XVIII. John Adams após assumir a presidência dos Estado unidos, nomeou John Marshall (Partido Federalista) para o cargo de secretário de Estado. De imediato, a oposição direta, encabeçada por Thomas Jefferson (Partido Republicano), começou a crescer. Era contrária a posição federalista de não apoiar a França no sentido de declarar guerra à Inglaterra, pois para os Republicanos os Estados Unidos tinha uma espécie de “dívida” com a França que os ajudaram no passado numa guerra contra a própria Inglaterra. Contudo, os Federalistas não aceitaram essa visão republicana a fim de não afetar as relações internacionais entre americanos e ingleses.
Diante da ascensão republicana, o Partido Federalista perdia força. A pressão foi tão grande que nas eleições gerais o Partido Federalista perdeu grande parte de seus integrantes no Congresso e, assim, o Partido Republicano ganhou mais força. Diante desse quadro, John Adams previu que perderia a presidência na próxima eleição. Aí que entra a grande sacada dele: no fim de seu mandato alterou a legislação dando o direito a ele de nomear diversos juízes das cortes americanas, inclusive da Suprema Corte Americano, e assim o fez.
Inicialmente, Adams nomeou Marshal, seu Secretário de Estado, para a o cargo de Chief Justice (Juíz chefe) da Suprema Corte. Além dele, estava na lista dos que seriam nomeados para cargos do judiciário, William Marbury. Esse ato foi conhecido como “midnight justice act”. Os novos juízes eram conhecidos como os juízes meia-noite porque Adams assinou as cartas de nomeação na meia-noite antes do presidente Thomas Jefferson tomar posse.
Acontecida a eleição presidencial, a vitória já prevista de Thomas Jefferson se concretizou. De imediato James Madyson ganhou o cargo de secretário de Estado que, por sua vez, caçou as nomeações feitas por Adams, declarando que quem já tomou posse já exerceu direito adquirido e, portanto, não poderia perder o cargo conquistado do judiciário, todavia quem ainda não tomou posse não poderia mais fazê-lo. Um desses impedidos era Marbury.
Indignado, acreditando ser detentor de direito líquido e certo, Marbury impetra um “writ of mandanus” na Suprema Corte, com base numa legislação infraconstitucional, que dizia que writ of mandanus contra Secretário de Estado e outras grandes autoridades do Estado seria julgado na Suprema Corte. A questão é que quem estava na Suprema Corte era Marshall, já exercendo a chefia do tribunal.
A decisão de Marshall foi no sentido de ratificar o direito que Marbury era detentor, mas ao mesmo tempo declarou que Suprema Corte não era a Casa competente para julgar, pois aquela legislação suscitada por Marbury era inconstitucional. Assim, Marshall inaugura as bases para o controle difuso de constitucionalidade, senão vejamos: a declaração de inconstitucionalidade não foi o pedido de Marbury, não houve controle concentrado, foi decidida incidentamente no caso concreto, foi a causa de pedir e não o pedido em sí.

Rui Barbosa, ao elaborar a Constituição de 1891, copiou do Direito americano toda essa base, porém foi esquecido um item que tornou o controle difuso brasileiro peculiar em relação ao americano: aqui, a decisão do Supremo Tribuna Federal, ao contrário de lá, não vincula aos tribunais inferiores, ou seja, uma decisão incidental não tem efeito vinculante erga omnes, mas inter-partes, via de regra. Vale-se ressaltar que o art. 52, X, CF traz a Reserva de plenário, que dá autonomia ao Senado Federal de declarar efeitos erga omnes a decisão de STF no controle difuso de constitucionalidade.